O convite para um jantar de final de ano lectivo numa instituição em que trabalhámos, parodiava um congresso científico. Cada um dos comensais estava encarregue de levar a cabo uma comunicação. Os títulos eram os mais variados:
– Stress familiar à hora do pequeno-almoço e estratégias de coping;
– Saúde e segurança na cozinha: análise qualitativa numa amostra de cozinheiras ambidestras;
– Stress e adaptação aos ritmos bio-psico-alimentares: uma análise transfronteiriça.
…estando nós encarregues de dissertar sobre o tema Condimentos alucinogéneos numa dieta esotérica de uma população toxicodependente
Excluindo a parte cómica da situação, o certo é que o conhecimento científico procura cada vez mais o detalhe, o pormenor ínfimo da realidade. Interessa fixar um ponto e escamoteá-lo até às últimas consequências. O exercício, que pode ser esclarecedor, e é-o frequentemente, pode ter a inconveniente consequência da perda da totalidade do mundo.
A caricatura deste tipo de saber é de fácil evocação: o cientista caçador de borboletas, alienado das coisas. A vontade de coleccionar e classificar exemplares desligou o caçador da vida social e dos restantes conhecimentos científicos. Um saber assim valerá alguma coisa?
Certamente que sim – a classificação de borboletas poderá guardar uma qualquer utilidade que, por ora, não conseguimos desvendar. Mas o indivíduo em questão sairá empobrecido na sua humanidade. Não explora toda a riqueza do seu eu.
A hiperespecialização científica não pode ser um fim em si mesma, pelo menos para o indivíduo que a conduz: é necessário furar o saber, regressar à globalidade da ciência. Como é que isso se faz? Bom, a interiorização do método com que se realizou a investigação é um passo: podemos aplicá-lo a outros assuntos. Depois, é necessário afastarmo-nos da investigação, deixá-la sozinha, partir para novos projectos.
Focamos o lado humano da hiperespecialização científica. Trata-se de saber os modos de salvaguarda do cientista enquanto ser humano que é. O exercício de um espírito interdisciplinar é indispensável para este fito.
O problema é que o cultivo do eu, a preservação de uma sólida cultura geral não se ensina nos percursos académicos. É algo que pertence às escolhas de cada um. O equilíbrio de conhecimentos deve interessar ao cientista: é que ele tem a obrigação de, depois de feita a investigação, traduzir os resultados de modo que eles possam ser apropriados pelo público em geral.
Só assim tudo isto fará sentido.
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