Acordemos sobre certos pontos: o homem é o ser mais destruidor à face do planeta. Quando vemos filmes de terror sobre o tubarão ou o dinossauro ressuscitado, evocando a temática do super-predador, não nos iludamos: nós é que somos super-predadores. Se concordarmos neste aspecto, também é fácil fazermos juntos mais um passo: cada época histórica revela um modo de sujeição e exploração do homem sobre os animais e as plantas. Em síntese: a relação ser humano natureza tende a um progressivo refinamento nas formas e na extensão da sujeição dos seres vivos e inanimados ao homem.
A tourada é o símbolo, condensa em si toda uma forma de relação do homem com a natureza nas sociedades agrárias. Especialistas em antropologia explicam-nos com detalhe toda a simbologia envolvida nesse espectáculo. A partir daqui as opiniões dividem-se irremediavelmente: a tradição justifica o espectáculo, a tradição não justifica o espectáculo. Pessoalmente, respeito essa tradição apesar de não sentir grande afinidade com ela.
Atentemos, porém, nas polémicas que se fazem sobre a tourada. Temos quase sempre a sensação da questão estar a ser empolada e, mais grave ainda, de passar ao lado das problemáticas realmente actuais. É que nós não vivemos em sociedades agrárias mas em sociedades urbanas. A reflexão que se impõe é sobre a nossa actual relação com a natureza. O assunto é vasto e engloba questões como a poluição, a exploração das diversas fontes energéticas, entre muitas outras. Elegeremos, apenas uma, que mantém algum paralelismo com a tourada: a questão dos animais de estimação.
Deparamo-nos, cada vez mais, com cães tratados como pessoas, vestidos de colete e levados ao colo quando mais cansados; com animais que não existem, pois a selecção artificial cria linhagens, raças com características que mais agradam aos humanos. O terror não termina aqui: nas lojas da especialidade vendem-se peixes coloridos artificialmente com a morte aprazada.
Teríamos de reformular a perspectiva: já não se trata de uma relação de dominação do homem sobre a natureza, mas da criação de uma outra natureza. Uma perversão da natureza.
O tema adquire extrema acuidade quando agora se fala em manipulação genética eem clonagem. Poderíamoscriar uma “imortalidade” ao nosso bichano falecido. Poderíamos criar um animal à exacta medida dos nossos medos. Esta é toda uma temática que está por debater – mas que nem por sombras a esgota. Ainda há, por exemplo, a criação de animais para abate que nunca tiveram vida animal: eram apenas quilos de carne esperando a morte mas não estando realmente viventes…
Muitas vezes escolhemos a solução mais fácil: criticamos as sociedades agrárias, nas suas contradições, mas não conseguimos pensar sobre nós mesmos, sobre as nossas fraquezas… No fundo, é sempre melhor olharmos o outro do que a nós mesmos.
O Primeiro de Janeiro, 30 Abril 2008.
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