Na idade média a informação era muito cara. Os monges escribas eram obrigados a utilizar livros já escritos para registar novas informações. Eram os famosos palimpsestos: escrita sobre escrita sobre escrita. A título de curiosidade, lembremo-nos que foi utilizando técnicas modernas que se descobriram trabalhos de Arquimedes: ocultos por outras camadas de registos por séculos e séculos. Nós, pelo contrário, sofremos do mal oposto: a informação pode ser registada praticamente sem limite. O desenvolvimento de dispositivos de registo acontece a velocidade supersónica: dos megabytes passámos aos gigabytes, aos terabytes…
Da mesma forma, todos os nossos gestos são registados no mundo virtual: os sites que visitamos, os likes e os mails. Serve esta informação para a personalização da publicidade que nos é endereçada e outros fins mais ou menos inconfessáveis. Pomo-nos a pensar: como será fazer a biografia de um escritor/a famoso do século XXI?… Poder-nos-emos acercar do seu comportamento internáutico? Eleger o mail como uma forma literária em vez da tradicional epistolografia? Acederemos nós a comportamentos cybersexuais dos grandes vultos da nossa cultura, na nossa ânsia de poder compreender melhor os porquês desta obra e daquela?
A coisa é de tal modo que se defende agora o direito ao esquecimento e ao erro, por exemplo: algum dito na rede social na época adolescência poder-nos-ia acompanhar por toda a vida… E como será morrer no mundo digital: quem é que terá acesso aos nossos despojos e em que condições? Seremos apagados da internet?
Aproximamo-nos do tema que encima o nosso texto: a escrita na era digital, num momento em que nada se esquece, em que tudo fica em linha. Cesariny falava de migração eterna das palavras, referindo-se a certas expressões e ideias que apareciam em diferentes grandes autores da literatura lusitana. Dizia ser natural que essa migração possa acontecer e justifique ocasionais repetições – que na verdade não o são porque em existentes em contextos diversos e ritmos poéticos.
Lembremo-nos que a ideia de um autor completamente original é relativamente recente na história. Na época clássica, seria natural um determinado escritor tratar de um tema mitológico, apropriando-se dele e recriando-o. Seria também natural um jovem artista reviver determinadas passagens de grandes obras como forma de aprendizagem pessoal – tal aceitação poderá explicar certas passagens de Camões e de Eça de Queirós, a título de exemplo.
Mas vivemos na era digital: onde todas as frases e expressões são conservadas. Existem programas atualmente que medem o índice de plágio de determinado texto. Em que medida este ou aquele trabalho pertencem esta ou aquela pessoa? A automatização deste processo é já possível: gestos informáticos, impossíveis a humanos: um dado texto é comparado com o que existe no digital. É posteriormente fornecido um índice de plágio.
Eis o curioso: este índice de plágio, chamamos-lhe nós, é sempre diferente do zero. Aliás, pode-se aceitar como legítimo um índice de 10% a 20%… É como se estivéssemos perante uma imensa cacofonia de textos e de gestos sobre os quais cada vez mais seria difícil destacarmo-nos como indivíduos únicos. Tudo já foi escrito… atualizemos a máxima: tudo já foi escrito e encontra-se registado no digital.
De que forma esta tendência se conjugará com o imperativo da era moderna de ser sempre original?
Ainda assim, seguir escrevendo…