Entro na repartição num dia ensolarado. Tinha-me esquecido como tudo é muito complicado numa repartição: a cruz ultrapassa a quadrícula, a caneta deve ser preta, o formulário é o 32-A.
Quando estava na fila de espera já tinha evocado a dissertação poética de Alexandre O’Neill sobre as moscas (as moscas que teimam em adejar as lâmpadas velhas das repartições). Mas, agora, com todos os entraves, com toda a má vontade estampada no rosto da funcionária, a evocação já é outra: sigo O’Neill, noutro texto, onde o poeta propõe o conceito de destrabalhador.
Não há dúvidas: estamos perante uma destrabalhadora. Apesar de tudo, com maior ou menor dificuldade, vou conseguindo tornear os obstáculos. A funcionária vê-se desprotegida e miserável, perante a iminência de ter de fazer alguma coisa.
Penélope, pelo menos, trabalhava de dia e só quando estava sozinha, a altas horas, é que ia desfazer o seu tapete, na absurda esperança do regresso de Ulisses. A destrabalhadora, porém, difere de Penélope em muitos pontos: não sabe tecer tapetes; não é capaz do sentimento puríssimo do amor; e, finalmente, quando cai na cama, de consciência tranquila, o seu sono é entrecortado por um ressonar perturbador.
Recebo o certificado de sorriso nos lábios: fui um vencedor na mais encarniçada das batalhas. Desço as escadas do prédio velho, até o sabor a vitória desfazer-se nos lábios. Sobrevém a frustração e o nervosismo. Toda esta batalha serviu para quê? Fico com a sensação enervante de um dia desperdiçado. Que fazer com toda esta história? Vou escrevê-la! Vou partilhar este meu sofrimento convosco.
Rollo May, eminente psicólogo americano, considerava a expressão de um poder pessoal como uma das necessidades básicas de qualquer ser humano. Por outras palavras: todos nós necessitamos de controlar o que se passa à nossa volta, de sermos autores activos das nossas vidas. A cada passo, quando nos encontramos com os outros, deparamo-nos com as necessidades de afirmação de cada um.
Mas será que é realmente sábio ter de compreender uma destrabalhadora?
O Primeiro de Janeiro, 1 Agosto 2007.
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