Uma menina de três anos, quando de visita a casa dos avós, pediu insistentemente para ir ao sótão e pesquisar em velhas arcas, os brinquedos que entretiveram o seu pai e tio quando eram pequenos… Dos vários brinquedos que descobriu, interessam-nos duas categorias para a crónica de hoje: um conjunto de peças de encaixe que poderiam, se montados, formar muralhas de castelos medievais e uma série de bonecos, entre os quais sobressai um índio, pelas razões que já tornaremos explícitas.
O faz de conta evoluiu da seguinte maneira: a menina forma o castelo, dispõe os bonecos dos índios e dos cowboys… Até aqui nada de novo… mas mesmo nada? No interior do pequeno edifício, a suposta caserna do exército passou a ser uma cama, onde o selvagem índio dorme um sono descansado. A avó observou que nunca aquele castelo tinha servido de casa de bonecas… Bem cedo a diferença da identidade sexual se expressa no desenvolvimento humano.
Este intróito vem a propósito de um estudo português (abundantemente citado nos jornais da pretérita semana) que, relacionando a vida profissional e familiar, chegava à conclusão que as mulheres nacionais desempenhavam a maior parte das tarefas domésticas, cumulativamente com as exigências que as suas vidas profissionais iam apresentando. As mudanças dos papéis sociais operam-se sobre um fundo multissecular que teimaem persistir. Assim, e grosso modo, as mulheres mantêm as obrigações da feminilidade tradicional, ao mesmo tempo que se lançam no mundo profissional, numa competição mais ou menos aberta com o sexo oposto. Em relação aos homens, acontece o contrário: vêem o seu tradicional espaço de trabalho invadido e, em casa, as coisas vão começando a mudar…
Lemos também algures um comentário de uma super-modelo, dizendo ter pena do papel dos homens. Segundo ela, eles não sabiam se deviam pagar a conta do almoço num restaurante, se deixar que a mulher o fizesse. Para ela, os homens já não sabem bem o que é exigido deles… Temos aqui um testemunho das classes altas e de como, também aí, a vaga de mudança faz sentir as suas consequências.
Vivemos numa época em que a igualdade e uma certa tendência unissexo desenham novas tensões sociais. Tudo está a ser reequacionando e redefinido. O problema é que, na matriz desse movimento, há uma diferença insanável: aprendemos a ser homem ou mulher através de percursos opostos, com objectos diversos, construindo imagens diferentes de nós mesmos. Há uma matriz genética-cultural que nos impele para interesses díspares desde a mais tenra infância.
A igualdade de direitos entre os sexos, um movimento saudável e irreversível, não deve correr o risco de se tornar uniformizadora, ignorando a multiplicidade fundamental que é o cerne da nossa sexualidade enquanto seres humanos.
In O Primeiro de Janeiro, 20 Fevereiro 2008.
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