Em pleno Agosto

Logotipo do jornal O Primeiro de JaneiroDe repente, fez-se um silêncio na cidade. As ruas esvaziaram-se de automóveis. O trânsito reduziu-se a dimensões razoáveis. Às vezes, víamo-nos a viver num romance de Kafka: as filas que nos esperavam, à saída de casa, assemelhavam-se a monstros a quem, diariamente, tínhamos de prestar vassalagem.

Estávamos habituados a conviver com a irracionalidade. O verão oferendou-nos, porém, o mais inefável tesouro: uma cidade arejada, onde até é agradável viver, onde a mobilidade não dói. As ruas do centro sofreram pequenas modificações: parecem mais cosmopolitas, agora que parcialmente invadidas por turistas.

Podemos esquecer a inépcia da urbe. A dificuldade que sempre teve em fazer conviver o antigo com o novo. Fomos tomar café, hoje de manhã, sem a companhia do ruído de fundo que os motores dos carros provocam! O esplendor da luz ajuda também à alegria: expande os sentidos, liberta um sorriso de que já não nos julgávamos capazes.

O tempo de fim de tarde é finalmente aproveitável: num passeio por um parque frondoso, as árvores que insistem no seu verde; nalgum museu, com a seriedade da criação de homens que quiseram reinventar as condições da sua existência.

Pudéssemos viver o nosso tempo citadino como o fazemos em Agosto. As repartições públicas parecem milagrosamente ajustadas às necessidades. A desertificação da Baixa parece mais doce, uma vez que povoada de sombras quentes. Gostaríamos de proteger este tesouro por anos e anos.

Mas o engano é breve. Falta pouco para Setembro: o trânsito, como que por magia, ressuscitará. Alguns buracos das ruas, por agora imóveis, clamarão por assistência contribuindo assim para o engrandecimento do caos. O quotidiano dos portuenses será mais complicado do que nunca…

As árvores irão, da mesma forma repetir uma imemorável traição. Desistirão do verde. Exibirão o seu esqueleto nu ao nosso mortificado dia a dia. Todos os anos, deitamos tudo fora no final de Agosto. Esquecemos a alegria de uma vida saudável. Esquecemos que as torturas urbanas podiam ser mais suaves. Esquecemos tudo. O homem é um ser estranho que luta contra si, que a si mesmo se prejudica.

Quisemos ensaiar aqui um tom idílico. Pintámos a cidade de cores que sabemos não pertencer à realidade. Mas sonhar, sabe-se lá porquê, faz bem. Não queremos acreditar que os pesadelos regressarão. Será sempre como hoje… um Agosto.

O Primeiro de Janeiro, 18 Agosto 2002.

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