Navegar é preciso…

Logo do Porto 24 ilustra trabalhos de Rui Tinoco

Michel Foucault, no início da sua obra “História da Loucura”, faz uma referência a Gil Vicente a propósito dos seus autos das barcas. As barcas, embarcações que durante a Idade Média viajavam de porto em porto, funcionavam como transporte para o que era indesejável em cada cidade. As barcas criavam uma  zona de ninguém, em que o excluído e as identidades pardas se mudavam de lugar em lugar.

Neste sentido, as barcas transportavam pessoas que eram excluídas e que se iriam sujeitar ao julgamento e à opinião de outros no esforço de se adaptarem a um novo espaço. Gil Vicente nos seus autos explana detalhadamente diversos tipos de figuras medievais (ou tardo-medievais) e o modo como elas são julgadas ou se relacionam com a esfera religiosa – no fundo fazendo um julgamento moral sobre os seus comportamentos.

E nos dias de hoje?… No que ao turismo diz respeito, o segmento dos cruzeiros é um setor da atividade que tem vindo a conquistar importantes franjas do mercado, sendo resistente à crise mesmo no que ao mercado nacional diz respeito. A atividade demarketing tem desdobrado a oferta de cruzeiros pelos mais variados grupos de interesse: desde os cruzeiros dedicados ao desporto, aos casuais, aos dedicados à família e por aí em diante. Para muitos fazer um cruzeiro será a concretização de um sonho de uma vida (ou um sonho induzido por campanhas publicitárias?); para outros, uma alternativa diferente às férias que já se costuma fazer.

A atividade cruzeirista apresenta diversas vantagens: a vantagem de um hotel (o navio) que oferece normalmente muitos serviços ao melhor nível, ao mesmo tempo que se desloca, permitindo depois a visita a locais diferentes a partir do elemento mais invulgar que é a água.

No entanto, e usando da grelha foucaltiana evocada fugazmente no início do texto, o que poderemos acrescentar? Se nos tempos medievais a barca era o que levava, o que no fundo aliviava as cidades da desordem e do indesejável, o cruzeiro moderno procede de modo exatamente oposto. Os navios estão cheios de ordem, transportam todos aqueles que dispõem de meios económicos suficientes para despender neste género de férias – uma elite no fundo. O cruzeiro é o mesmo que se desloca, o turista que deseja ver os outros a partir do seu bem-estar, que não deseja contactá-los mas apenas a sua ver a superfície.

Muito do turismo moderno partilha do pecado mortal do etnocentrismo. Ir visitar outras culturas mas sem entrar em verdadeiro contacto. Visitas apressadas e sem tempo para verdadeira troca. No fundo: o turista fotografa não para ver melhor mas para mais tarde recordar o que não viu. Um comportamento paradoxal que acaba por reforçar a cegueira: penso que conheço o outro, porque estive lá, mas sem nunca verdadeiramente ter estado lá…

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