O inumano

Logotipo do jornal Primeira MãoA tecnologia influência o nosso modo de pensar. Exige o desenvolvimento de determinadas competências, relega outras para segundo plano. Kerckhove, no seu livro A Pele da Cultura, debruça-se sobre a história da humanidade a partir precisamente desse prisma: qual o impacto que as descobertas e os avanços tecnológicos tiveram na forma como pensamos. Ou seja, o refluxo que as invenções têm na forma de pensar e de viver das pessoas que delas beneficiam.

A disseminação da máquina de calcular, por exemplo, fez com que muitas das capacidades de cálculo e raciocínio matemático fossem exportadas, saíssem do campo mental de muitos de nós. Actualmente, acontece um movimento semelhante no que concerne ao texto e à escrita. Retiram-se apresentações da internet, lêem-se textos que não são nossos mas também não são de ninguém. Quais as consequências deste estado de coisas? Qual o preço que teremos de pagar por usar instrumentos que funcionam mais rápido do que nós?

Estudos recentes apontam que o uso continuado da internet fez com que um grupo de jovens tivesse menor capacidade de atenção que um outro. É isso que o mundo virtual acaba por evocar: uma atenção difusa e dispersa que é parcelar e foge de textos longos. Há demasiadas janelas abertas…

Também o mundo virtual modifica as relações laborais inventando novos empregos e ocupações, esvaziando outras do seu sentido e solidez. Os interstícios também não podem ser escamoteados, mesmo em profissões ditas tradicionais o virtual acaba por se infiltrar modificando equilíbrios, introduzindo novas práticas. Deste modo, emergem sistemas de controle de assiduidade virtuais; redes de trabalho em que documentos partilhados são objecto da intervenção de um grupo de autores.

No que respeito às redes sociais, assunto tão em moda nos últimos tempos, a aceleração da forma como se podem obter informações sobre as outras pessoas é realmente intrigante. Se no advento das cidades modernas, os prédios e os apartamentos dificultaram a socialização e a criação de laços entre as pessoas, as redes sociais como que reintroduzem a dimensão de aldeia (global) nos subúrbios. Através das amizades consigo descobrir a profissão do vizinho debaixo e o de cima: em pouco tempo, se não puser entraves ao movimento, bem entendido, terei de medir muito o que escrevo. Terei de gerir as aparências, o que fica bem e o que fica mal, face aos meus vizinhos com os quais até há bem pouco tempo mal reconhecia os rostos. As redes sociais podem, com efeito, invadir o real e tornar mais próximo os vizinhos há muito arredados da convivência quotidiana a que o advento dos apartamentos os votou.

Existem oportunidades neste mundo virtual, muitas das quais começamos ainda a conhecer os contornos. No entanto, muitos utilizadores ainda desconhecem como se proteger, como gerir a privacidade face ao virtual. Desde há algum tempo, muitos de nós se habituaram a ter como normal o facto de estar sempre a facultar os seus dados, a passar em dispositivos electrónicos que detectam eventuais roubos.

Pequenos gestos no mundo virtual denunciam essa invasão do inumano: na rapidez com que se distribui trabalho via mail, na forma como pedimos informação a alguém e depois não agradecemos a resposta. Confundimo-nos perigosamente com as máquinas… É quando estamos a abrir uma conta em determinado site e temos de digitar umas letras com contornos esquisitos que essa aproximação é realmente visível: um computador quer-se assegurar que somos mesmo humanos e não outro computador – um deles.

Originalmente publicado no semaário Primeira Mão, 15 de Abril de 2011.

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