O poder dos pequenos gestos

Arranhar o céuUma obra coletiva vinda a lume nos anos 60 organizada por Jefferson intitulava-se Resistência através de Rituais. Consistia numa série de artigos sobre subculturas britânicas, ligadas ao consumo de substâncias psicoativas. O consumo de certas substâncias parecia ligar-se a uma certa posição existencial. Não nos alongaremos sobre esse tema, vamos ao invés sublinhar o postulado que orientou a obra: os rituais ou comportamentos, mesmo os da nossa intimidade, ao tornarem-se simbólicos, podem entre outras funções assumir o papel de resistência.

O ativismo ecológico foi nesse aspecto fundador. A Green Peace organizou uma série de acções de protesto, em que o simbólico e o espetacular assumiam funções centrais, encontrando o eco nos mass media. O impacto é grande constituindo-se essas ações como instrumento político. A disseminação da consciência ecológica fez com que os consumidores decidissem os seus gastos também em função desse factor. Os exemplos são facilmente elencáveis: as lâmpadas verdes, os eletrodomésticos amigos do ambiente, entre muitos outros.

A propósito do ecológico convocaram-se resistências, pequenos gestos – lá está resistência através de rituais ou micro comportamentos – e essas resistências provocaram mudanças nos produtores que se preocuparam, real ou aparentemente, com o impacto que têm sobre a natureza.

Num momento em que todos nós somos alvo de uma forte violência por parte do Estado, poderia ser interessante encarar os pequenos gestos no que eles têm de dimensão política. Falamos do ato central das sociedades contemporâneas: o consumo. O consumo expressa dominação – porque o consumidor é alvo de publicidade, paga impostos, e é vítima depois da obsolescência planeada – em poucos meses o que comprou já é velho. Sobretudo o momento do consumo despoja o indivíduo do saber sobre o seu ato, isto é: saber como as coisas são produzidas ou produzi-las ele mesmo (e não nos referimos somente a sofisticados dispositivos tecnológicos mas à ideia de produzir alimentos, cultivá-los ou transformá-los: fazer pão, fazer manteiga, moer o café que se consome ou comprá-lo em cápsulas, etc…)

O objetivo geral passa por despojar o consumidor de todas as nuances do seu ato e pô-lo somente a gastar dinheiro. Esquece-se, porém, que consumir é em si mesmo um gesto com existência de per si – e que por isso mesmo possui uma dimensão política. Assim, pequenos gestos como não ir pela autoestrada portajada, produzir os seus próprios alimentos ou ainda não consumir podem ser reinterpretados como atos de resistência.

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