No telejornal, em horário nobre, tudo se prepara para a evocação da figura estigmatizada. Entrevista-se uma sombra que relata a sua pretérita experiência nos casinos. A voz foi distorcida, ampliando a estranheza da situação. Ouvimos: o jogo é um vício que obrigou o sujeito aos actos mais irracionais. Destruiu inúmeras dimensões da sua vida desde a esfera familiar, ao emprego, passando pelas dívidas incomportáveis. O discurso de heroinómano com um percurso considerável com a substância é, de algum modo, semelhante: a droga é má, destrói tudo; a droga obrigou-me a este acto e àquele?. Em ambos os casos existe uma dificuldade na integração dos comportamentos adictivos numa coerência biográfica. É recorrente ouvirmos esta frase aos toxicodependentes que atendemos: «antes de me meter nisto estava tudo bem, era feliz, depois foi a desgraça». Não existe continuidade, há alguma coisa que se interrompeu. O eu presente não consegue regressar ao passado numa perspectiva globalizadora.
Sabemos que isto não foi sempre assim: um consumidor de drogas dos anos sessenta, no contexto contracultural norte-americano e britânico, explicava o seu consumo como uma atitude de protesto. Aliás, o título de uma obra sobre as subculturas dessa época sintetiza admiravelmente a ideia: Resistência Através de Rituais. No presente, o heroinómano de rua não se afirma como agente mas sim como coisa agida. O seu gesto não é de protesto mas o do sofrimento da subjugação à substância. Mas por que é que consome? Silêncio. Não há resposta plausível: Foram os amigos, foi por acaso? Aliás, existe até alguma relutância em responder à interrogação: como corresponde a algo inexplicável, a vontade maior é a do esquecimento. A coisa agida vive sempre o mesmo dia: a existência é totalmente preenchida por algo exterior, totalmente ocupada pela adicção.
Um heroinómano actual explica, profusamente até, a sua vida de consumidor. Desenrola os motivos por ter feito esta opção e não aquela ? mas explica as opções da sua história com a substância e não o modo como ela apareceu. O termo fissura biográfica pretende, pois, englobar qualquer acontecimento de vida que impossibilite a construção de uma coerência longitudinal do sujeito para si mesmo. A entrada nas drogas é vivida, frequentemente, como não tendo nada que ver com o que a precede; e, por outro lado, destrói o que está depois. O indivíduo adicto ao jogo poderá defrontar-se com a mesma dificuldade biográfica. Em ambos os casos há um «pôr fora» da responsabilidade dos actos (externalização). Reparem: o indivíduo age por obrigação da droga. A substância está fora dele e persegue-o. O jogo descoordenou uma vida sem que se possa explicar o motivo do acontecimento.
O sucesso de estruturas de recuperação que apelam a dimensões religiosas e que cultivam o mito do fundador da instituição (indivíduo que é visto como sendo possuidor de uma excepcional estrutura moral) pode explicar-se por elas serem capazes de fornecer ao ex-consumidor uma forte estrutura de explicações de si. O indivíduo que percorre todas as etapas propostas por este tipo de instituição torna-se seu militante ideológico. Eis a grande dificuldade de um processo de recuperação de um toxicodependente: os antecedentes não têm continuidade na história do indivíduo. Os comportamentos adictivos implodiram a continuidade biográfica do indivíduo. O heroinómano recém recuperado continua a não saber explicar-se perante si mesmo. A desorganização comportamental não tem explicação.
O desafio é conseguir que o sujeito se afaste destas perguntas sem resposta. A reactivação de diversos interesses de vida e a descoberta de novas áreas da existência permitem um afastamento do conflito irresolúvel que nomeámos e que, por vezes, assume contornos bem profundos.
A distanciação permitirá, mais tarde, um retomar do passado, a apropriação da fase de consumos como uma etapa de vida, menos feliz é certo, mas já não vivida como algo exterior ou alienígena. Trata-se de uma operação de acomodação de memórias. Um percurso sólido, já construído sem a substância, permitirá ao sujeito a reapropriação de um sentido de poder sobre os seus actos que implicará, de igual forma, a apropriação do seu passado de um modo mais activo: a lenta reconstrução das fissuras biográficas.
In A Página da Educação, Fevereiro de 2003
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