Definir o que aconteceu. Ter o poder de escrever a história. Ou ainda um objetivo mais devastador: fazer acontecer do modo que quisermos, agora, neste momento.
Estas tentações estão realmente facilitadas graças ao poder que as novas tecnologias disponibilizam. Não se pense, porém, que é uma possibilidade recente.
Lembro-me de assistir a um documentário sobre pinturas pré-históricas. Um entrevistador descreveu com acuidade a experiência que, certamente, um homem dessa era viveria. Os animais pintados nas cavernas eram iluminados por fogo, a luz irregular daria a sensação de movimento a quem as contemplasse. Assim, as caçadas dariam origem a réplicas – antecipatórias? – do que teria de acontecer para a tribo ou grupo de homens poder sobreviver.
O desejo do que se quer ver sempre se misturou com o que se vê.
As religiões têm também uma forte componente representativa. Ou seja: fornecem uma grelha de leitura sobre o que acontece na natureza – isto é, lendo as manifestações materiais na sua suposta relação com o divino.
Mais ainda, por exemplo: na Missa, a sagração da hóstia como corpo de Deus, remete para a manifestação do divino num aqui e agora.
Aliás, idêntica reflexão poder-se-á fazer a propósito dos vários aspetos da celebração Cristã. A talha dourada das igrejas, as vestimentas do clero e ainda as relíquias de santos… Tudo isso causaria a impressão de um tempo e um espaço diferente numa sociedade agrária profundamente reduzida na sua mobilidade e marcada, no quotidiano, pelos ritmos solares. Ao entrar numa igreja o nosso agricultor era aturdido com um espetáculo multimédia – no sentido de ser multissensorial – que incluía ainda manifestações do divino.
Há outros exemplos em momentos históricos diversos. O movimento sofista como uma das causas da decadência da dramaturgia grega clássica. As audiências em vez de se interessarem pelas peças de teatro, onde o mitológico era peça central, passaram a preferir assistir a sessões de tribunais onde se trataria de «casos reais». Estamos perante a evidência central do que é um dispositivo representativo: a apresentação no aqui e agora do que aconteceu – não como representação mas como a própria realidade.
A sessão de tribunal é também a revivência do drama ou do crime que está a ser julgado.
Idealmente, como no caso do tribunal, o delay é reduzido ao mínimo. A audiência esquecia-se estar perante o que é, a seu modo, uma encenação, para a encarar como realidade.
Vejamos mais um pouco outros casos de dispositivos representativos, desta feita com delay. Os romanos durante as guerras púnicas exibiam, na rostra, as proas dos navios cartagineses capturados e destruídos. A mesma civilização, na época do império, construiu a chamada coluna de Trajano, nela se conta, em baixo relevo e sequencialmente, a história das campanhas de conquista dos romanos contra os Dácios. Acabámos também de referir o caso dos tribunais helénicos em que a plateia era presenteada por uma espécie de revivência do acontecido, uma condensação do real.
Um outro exemplo de um dispositivo representativo, em que não existe delay, observou-se no império bizantino. De que modo um bizantino, ou romano oriental, encarava os ícones? Os ícones eram representações de episódios bíblicos, mas em vez de serem sentidas como figurativas eram um outro tempo que nos permitia conetar com o que aconteceu, fazendo acontecer agora e perpetuamente.
Deste modo, o ato de jurar sobre essas imagens, por forma a selar um acordo, constituía uma valiosa garantia.
Serviram estas notas históricas para nos descentrarmos um pouco presente. Apesar da televisão, do computador ou da fotografia, a ideia da condensação da realidade através de um dispositivo tem já uma longa história. Cumpriu constantes objetivos políticos e de controle social.
A este respeito vem-nos à memória o nome que se usava na descrição das primeiras máquinas fotográficas: espelhos com memória. Duas funções, por tanto: refletir a realidade – a função de condensação; e a função mnésica, por conseguir conservá-la apesar do tempo (neste sentido cumprindo funções hipomnésicas como propõe Stiegler).
Ouvimos também repetidamente: uma imagem vale mil palavras; ou ainda, assista à guerra em direto – como se o facto de uma câmara estar a filmar não influenciasse em nada o processo de condensação da realidade.
As imagens movem-se num tempo próprio, acompanhadas por som: ruídos e falas. A televisão é mais espelho com memória do que a fotografia. Esta captura instantes, aquela movimentos e ambientes. A omnipotência mediática aumenta a mistificação. Faço o tempo andar para trás. Fixo a imagem, manipulo-a. Brevemente adquiro poder de definir o que aconteceu, segundo o meu desejo e ainda de forma mais verosímil do que a realidade.
Foi neste momento que o espelho refletiu a imagem de outro espelho – num movimento infinito de repetições. A guerra que se vê no canal informação, o opinion maker que define para nós o que aconteceu e o que devemos pensar sobre isso; um outro opinion maker que concorda num aspeto e discorda de outro.
Mais à frente mudamos de canal: a entrevista a uma celebridade revela finalmente a verdade sobre os últimos acontecimentos. Ou o reality show desvela a «espontaneidade com que se formam e evoluem os grupos humanos».
Em vez do ícone sagrado sobre o qual se prestava juramento, eis que os ecrãs condensam a realidade e, simplificando-a, tornam tudo mais fácil.
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