O ato de queimar livros é capaz de evocar em nós fortes imagens. Lembramo-nos de ditadores, da edição de listas de livros proscritos e da sua destruição em rituais macabros. Também recordamos escritores que sofreram idênticas perseguições e foram objeto de um ódio em tudo igual ao que as suas obras foram vítimas.
Vivemos uma época paradoxal. Não há uma queimada de livros ou de discos mas, na verdade, cada vez se publica menos e amplas áreas desta actividade quase desapareceram (excetuamos aqui o caso de um grande grupo editorial português que recentemente guilhotinou um considerável número de obras). Claro que resta o bestseller associado à vida de alguma celebridade ou ainda a história baseada em factos reais que pretende desconstruir uma outra, mais conhecida, e à custa desse escândalo ser um sucesso de vendas.
Eis o critério de verdade numa sociedade de consumo: o sucesso transformado em riqueza.
Mas falávamos do desaparecimento silencioso dos livros e dos discos – dos objectos de pensamento. Queremos englobar neste conceito qualquer expressão de natureza artística, filosófica ou científica que nos ofereça a subjetividade plena de um autor.
O texto e o disco fragmentam-se na internet. É fácil descarregar obras e músicas. Saltar de link em link, cavalgando uma atenção fugaz. Diz-nos Jakob Nielson que o internauta lê os textos em F – uma leitura mais extensa na horizontal, uma segunda mais breve e depois uma última na vertical – violentando frases, lendo os negritos, recebendo apenas pregnâncias perceptivas… Mas o que se lê na vertical? Trata-se de uma leitura do não-sentido, da não frase que se crê como texto e se impõe na sua irracionalidade. A concentração difusa, que dedicamos a estes gestos, acaba por erodir a nossa capacidade de atenção. Defende Stiegler que estes dispositivos justificam uma parte da epidemia de défices de atenção com que o mundo ocidental actualmente se confronta.
É assim que os textos chegam aos leitores de hoje – leitores que, recordamos, já não querem o livro por demasiado ineficaz e lento. Quanto à música, ocorre idêntico fenómeno. Ouvem-se melodias mais comerciais mas a ideia de álbum como testemunho de uma evolução criativa – no fundo, um outro objecto de pensamento – acaba por perder-se.
No auge do desenvolvimento tecnológico, a infinitude de instrumentos disponibilizados acaba por curto-circuitar a reflexão. A própria ideia de autor, de um outro que nos fala através da obra, se encontra de algum modo em crise: surge rasurado nos downloads com que nos atulhamos.
Concomitantemente existem os aplicativos informáticos que maximizam o gesto humano. Eles invadiram praticamente todas as áreas de actividade. São os aplicativos financeiros, os que melhoram a performance de arquitetos, designers e um sem número de profissionais de variadas áreas.
Existe, porém uma face obscura: os softwares necessitam de constante actualização, são substituídos sucessivamente.
Trata-se do famoso conceito de obsolescência planeada de Kerckhove. A aceleração com que a desatualização nos invade dificulta a comunicação humana. Diziam-nos alguém em consulta que ainda percebe de determinada profissão mas que desconhece os dispositivos informáticos agora em uso. Esta pessoa viu-se em dificuldades de regressar ao trabalho, no fundo de exercer e de comunicar o seu saber, por não se entender com máquinas.
Exportámos o nosso saber para as máquinas e eis que elas se movem a uma velocidade desumana. Não as conseguimos acompanhar e ficamos subitamente excluídos.
Digitalizámos os objetos de pensamento. Descarregamo-los de modo fragmentário da internet. Perdemos esse nobre lugar de humanidade definido pela autoria e pela criatividade. Em nome de quê? Da eficiência do virtual e do informático. Ora acontece que a eficiência tende a mover-se a um ritmo que nos ultrapassa e nos tende a isolar.
A internet alça aos píncaros critérios como os ‘likes’, as partilhas, os comentários. Entrevimos já como se processa a leitura nestes contextos – o sucesso aqui é realmente critério de alguma coisa? Paradoxalmente, o fluxo informacional traz consigo o esquecimento. Da mesma forma, recusamos a apreensão da subjetividade de um outro criador. Ler um livro ou compreender uma música gera um fluxo informacional lento e diminuto.
A informação, a velocidade com que nos é atirada, acaba por se transformar num instrumento de dessensibilização – uma outra forma de minar o pensamento.
Como nos deveremos posicionar perante estes movimentos alienantes? Claro que nos podemos situar numa perspetiva optimista. Elencamos rapidamente argumentos: nunca vivemos numa época com tantas oportunidades e desenvolvimentos tecnológicos. Um indicador simples: a percentagem de população alfabetizada. Nunca foi tal alta na história do mundo ocidental. No entanto, o que fazemos com a nossa capacidade de ler? Como é que as tecnologias vão modificando a nossa forma de pensar?
O ser humano é das poucas espécies, provavelmente a única, capaz de se tornar a si mesma como objecto: sou capaz de ver-me, abstratamente, a ver o mar. Da mesma forma, imagino as consequências e alternativas aos meus acontecimentos de vida: a minha amada abandonou-me: sou capaz de falar com ela, inventar novos diálogos através da minha imaginação, alimentada pela dor.
Deslocamo-nos no registo onírico – utilizando essa capacidade de nos meta-projetarmos – de nos ver a viver. O virtual pode ser interpretado como uma consubstanciação, um suporte tecnológico dessa capacidade. Não falamos com um tu num chat ou num mundo virtual. Construímos um avatar, um outro eu ou apenas uma voz interior, que interage com outro tu padecedor de idêntica desfocagem.
A internet pode ser encarada, assim, como uma materialização tecnológica da capacidade do homem se tornar objecto para si próprio. Porém, em vez de nos confrontarmos com análises nós mesmos, vemo-nos deparados com o onírico desenraizado do que é humano. O homem é engolido pela internet e ao delegar a um avatar a ação, no fundo um simulacro dos seus atos, acaba por perder – temporária ou definitivamente – a capacidade de ver-se… e com isso desiste fundamentalmente de pensar.
A diferença a que tudo isto está do acto de ler um livro… Ao lermos um romance, por exemplo, tentamo-nos pôr nos lugares dos personagens, conhecer os seus pensamentos e motivações. Na navegação internáutica este desdobramento não é normalmente pensado, ou seja: não nos pomos no lugar do nosso avatar – ele é eu. Eis o erro…
Em suma, construímos um avatar no virtual que pretende ler o não sentido, amante do fluxo informacional que não consegue processar. Projetamo-nos num outro que não nos dá informação sobre nós, não pretende sequer essa reflexão, mas somente relacionar-se no mundo virtual.
A psicologia gestalt considera um interessante distúrbio do contacto, o egotismo. Esta perturbação sucede em pessoas que estão sempre a observar os seus gestos em vez de vivê-los. Em certas vivências do virtual poderá acontecer um fenómeno semelhante com uma crucial diferença: no virtual observa-se a fantasia, o não existente. Mas como no caso do egotismo, a imersão no virtual implicará o risco de nos esquecermos da vida… no lado de cá. Sem o querer claramente ficámos arredados da experiência da vida.
Rui Tinoco, psicólogo clínico
Algumas Referências
Kerckhove, D. (1997). A pele da cultura. Lisboa: Relógio de Água.
Nielsen, J. (2006). F-Shaped Pattern For Reading Web Content. Consultado em 10 Dez 2011
http://www.useit.com/alertbox/reading_pattern.html
Blom, R. (2004). The Handbook of Gestalt Play Therapy. London: Jessica Kingsley Publishers.
Stiegler, B. (2008). Télécracie contre la Democracie. Paris: Flammarion.
*
fotografia do autor
*
Também poderá estar interessado em ler:
Pingback: O livro em posts | Psicologia Saúde & Comunidade
Pingback: Dispositivo representativo ou a arte de representar a realidade | Psicologia Saúde & Comunidade