Os meios de comunicação actuais apelam constantemente às emoções e aos escândalos. Tudo se passa no imediato e num presente que não há forma de incorporar uma memória ou uma visão estruturada do que está para vir. É só ligar a televisão: o jogo mais importante do século é já amanhã; as declarações mais inesperadas e exclusivas estão prontas a ser-nos servidas; finalmente, vai ser desvendada toda a verdade só para nós.
O caso de Madeleine concentrou toda a febre mediática da silly season. Assim, houve carta branca para a dissertação e para descrições mais ou menos fantasiosas dos estados de espírito dos protagonistas. Até os especialistas convidados foram pressionados a entrar na fantasia. Assim, vimos psicólogos instados a comentar estados psíquicos, a ler sentimentos por detrás de posturas e até pronunciarem-se sobre intenções. Aqui, o Prof. Rui Abrunhosa merece uma palavra elogiosa, pois quando solicitado a desvendar o que estaria subjacente a certos gestos dos pais da criança se negou a fazê-lo, acrescentando que a investigação da psicologia criminal reputa tais indícios como não sendo grandes coadjuvantes na análise das situações (por outras palavras: as emoções podem ser verdadeiras ou completamente encenadas…). O espectáculo interrompeu-se uns breves segundos… mas regressou como se nada fosse.
Quando os pais da criança regressaram a Inglaterra, ouvimos repórteres a dizer coisas como isto: “os ingleses estão com os pais e desconfiam da polícia portuguesa”. Quer dizer: uma jornalista aterra num aeroporto e passados momentos já pode referir-se à totalidade da nação estrangeira com suposto conhecimento de causa, uma vez que está lá. Se isto não é fomentar a formação de estereótipos e um forte incentivo ao não pensamento, então não sabemos o que o é.
Mas estaremos provavelmente a defraudar as expectativas dos leitores: ao falar de Madeleine, só nos referimos ao funcionamento mediático despoletado a propósito do caso. E, de facto, que outra coisa é neste momento possível? Está praticamente votada ao fracasso qualquer tentativa de destrinçar entre facto real, relativo à situação da criança, e facto virtual, produto da sociedade do espectáculo.
Há anos atrás lemos um curioso comentário acerca da independência de Timor-leste. Um comentador norte-americano defendia que o interesse mediático e o escândalo produzido pelos massacres que decorreram depois do referendo, apenas foram possíveis por terem ocorrido num momento em que o volume noticiário era relativamente baixo nos EUA (o Verão, pois claro…). Timor foi apenas um modo de manter a máquina das emoções a funcionar num momento particularmente difícil.
Infelizmente, não é preciso ir tão longe: pensemos nas febres mediáticas dos últimos Verões, o flagelo dos incêndios. Vitória: anunciaram este ano que a área ardida foi muito menor… mas será que realmente foi? E mesmo sendo verdade, será que os fogos não seriam noticiados de outra forma, se não tivesse havido o caso Madeleine?
Sobre os incêndios a única coisa que nos parece segura é a verdade que o nosso próprio nariz nos anunciou: dois ou três dias se passaram em que o cheiro a queimado era insuportável na cidade do Porto…
Apetece-nos ficar voluntariamente confinados à verdade que nos vem dos corpos… Só a essa…
O Primeiro de Janeiro, 26 Setembro 2007.
*
Também poderá estar interessado em ler:
Os media como pedagogia do esquecimento
Nota sobre literacia mediática