Sempre nos espantou a demissão que os media actualmente sustentam em relação a uma função educativa na sociedade. A educação do gosto e a pedagogia cultural fizeram parte integrante das funções de muitos intelectuais e de muitos órgãos de informação até há relativamente pouco tempo. Em vez disto, fala-se agora da primazia das audiências, do facilitismo da mensagem simplificada e imediatamente consumível.
A verdade, porém, é que os media nos instruem numa nova pedagogia perfeitamente adaptável às exigências laborais com que todos nós nos temos de confrontar. A flexibilidade e instabilidade dos mercados requerem empresas que constantemente sejam capazes de se adaptar a novas exigências. Tudo isto repercute a nível individual: valoriza-se o presente em vez de metas a longo prazo; valoriza-se o emprego temporário; valoriza-se a capacidade de aquisição de novas competências, em lugar da rentabilização dos saberes adquiridos.
Em suma: precisamos de indivíduos com grande capacidade de transformação e de adaptabilidade. Tudo isto em detrimento de valores constantes como a identidade, a coerência, a sinceridade.
Vamos agora reflectir sobre alguns tipos de mensagem televisiva que são concordantes com estas novas exigências. O primado da imagem que ‘vale mil palavras’ é um dos axiomas desta forma de comunicação. Acrescentamos nós: a imagem esconjura a palavra. Vénias aos acontecimentos em imagem, exílio ao discurso que se poderia tecer sobre eles.
Somos tentados a simplificar o nosso olhar sobre o mundo.
A seguir, as narrativas que escutamos diariamente. A função de contar histórias sempre ocorreu nas mais variadas civilizações. Um famoso psicanalista analisou, inclusive, a estrutura dos contos de fada e o papel potencializador que estes poderiam desempenhar no desenvolvimento da criança. As telenovelas actuais são a antítese de tudo isso. É confrangedor constatar a ausência de coerência psicológica das personagens. A sua deriva de sentimentos que não se fixam: como se as personagens não tivessem memória, nem valores.
Somos diariamente confrontados com histórias que não se movem: somos tentados a uma simplificação da reflexão sobre nós mesmos.
Finalmente, os concursos, as entrevistas de rua. O dinheiro justifica tudo. A questão é saber qual o preço de cada pessoa. A intimidade torna-se objecto de espectáculo. A diversidade humana é objecto televisivo. Tudo isto estaria certo se não fosse a pressão subreptícia, exercida sobre todos nós, para que nos transformemos em informação mediática.
O entrevistador interroga-nos sobre as nossas práticas sexuais ou sobre uma nossa opinião e a interrogação é legítima. Pressão para que nos transformemos em espectáculo – a nossa opinião seria sempre motivo de mediatização e não o início de um verdadeiro diálogo.
O implícito de tudo isto, e o terrível de tudo isto, é a nossa transformação em seres passivos – que reagem aos estímulos e às solicitações, mas não têm acção própria. Daí o autoritarismo de muitos entrevistadores das nossas televisões. Agem como se tivessem a verdade última. Interrogam como se soubessem a resposta inevitável que o entrevistado tarda em não ver ou recusa-se – quiçá maldosamente – em não reproduzir.
Simplificação do olhar sobre o mundo, simplificação da reflexão sobre nós mesmos, expectativa que nos transformemos em informação mediática. Chamemos a tudo isto esquecimento. Esquecimento que é adaptativo ao mercado de trabalho, valorizador da performance e do presente eterno.
Será esta a única utilização do esquecimento? Poderíamos fazer um uso criativo desse abandono do passado, decorrente de todos estes movimentos. Saíamos à rua com um novo olhar sobre as coisas.
O olhar tornado possível por já não sabermos nada.
In O Primeiro de Janeiro, , 29 Setembro 2002.
*
Também poderá estar interessado em ler