Um dos factos inerentes às sociedades modernas é a emergência da adolescência como um estado autónomo que entremeia a infância e a idade adulta. Rapidamente: os rituais de passagem das tribos exóticas eram a fronteira precisa que abria portas à entrada na vida adulta, deixava-se de ser criança passava-se a crescido. A adolescência impôs fissuras entre os dois estados, configurando um espaço híbrido que se prolonga cada vez mais no tempo. A figura do jovem adulto é a expressão mais recente desse alargamento de fronteiras.
A hiperespecialização das tarefas que se observa no mundo ocidental, obriga as famílias a investir progressivamente mais tempo e dinheiro na educação das suas crianças. Eis uma das razões por detrás da progressiva quebra da taxa de natalidade verificada, um pouco por todo o lado, nas sociedades com elevados índices de desenvolvimento.
Mas a questão é que este adiamento da entrada na vida adulta proporcionou espaço à emergência de subculturas juvenis. Os anos 50 e 60 testemunharam o surgimento de diversos movimentos juvenis como os hippie, os teddy boys que causaram reacção de alarme social. Actualmente, a adesão de uma significativa parte da população escolar a gangs ou pelo menos, a certas formas ideológicas e expressivas que lhes subjazem, é um dos motivos de preocupação das autoridades norte-americanas.
Como explicar estes fenómenos? É evidente que uma certa ideologia, inclinada a valorizar o trabalho e a disciplina, tende a deixar os mais novos por longo tempo afastados de posições activas na sociedade. É este, precisamente, o cerne do problema: os gangs e as subculturas fornecem aos jovens sentimentos de autoria, de pertença e de identidade que lhes estão vedados de outro modo. Os sinais de pertença a uma ideologia juvenil, a filosofia de vida que lhe é inerente, possuem poder atractivo junto daqueles a quem lhes é dificultada outra forma de participação na sociedade.
Paradoxalmente, em vez de tentarmos reconhecer quais as necessidades insatisfeitas que explicam determinados comportamentos dos mais novos, tendemos a desvalorizar todas essas atitudes. Não reconhecemos o que todos esses sinais podem estar a querer revelar. Ampliamos, assim, a distância entre gerações. Os mais velhos desvalorizam certas formas actuais de se ser jovem; dizem-nos, ao fim ao cabo, que as suas vivências da juventude é que foram as correctas. Retiram aos mais novos qualquer forma de participação activa no social que escape às suas definições.
Pretendemos chamar aqui a atenção para os perigos da reificação das vivências: o que nós vivemos e aprendemos é muito importante, mas será sempre uma forma, entre muitas outras, de se ser homem – não devemos querer que todos cresçam do mesmo modo que nós. Negamos, deste modo, o lugar do outro.
A sociedade precisa de reinventar novas formas de identidade e de autoria que sejam alternativos aos valores do consumo e do trabalho – pelo menos para estas idades. Só assim poderemos fornecer modelos que sejam capazes de competir com as socializações desviantes que a adesão a subculturas e a gangs normalmente pressupõe.
In O Primeiro de Janeiro, 2 Setembro 2002.
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