Tornámo-nos todos objecto de ficção: inopinadamente um interlocutor televisivo questiona-nos na rua acerca das nossas preferências sexuais ou acerca do nosso político predilecto. A opinião evocada paira no ar uns breves momentos, já desligada da pessoa que a enunciou. Não interessa tanto o anónimo questionado, mas as posições abstractas de que serviu de exemplo vivo. No extremo oposto reluz o ídolo: Beckham passeou em LA, apreciando a arquitectura de certos edifícios. No entanto, não é Beckham que se pronuncia sobre o mundo, mas uma marca: preocupado com a promoção da sua imagem no mercado californiano, o jogador pretende assim lançar-se noutro contexto, quiçá piscando o olho à indústria cinematográfica tão ali à mão.
A pressão mediática sobre as estrelas populares submete os seres humanos, que se vêem nessa situação, a exigências paradoxais: são amados por quem não conhecem; mas são amados pelo que não são. Por outras palavras: precisam de gerir uma imagem que só reluz se não defraudar as expectativas das audiências. Em suma: Beckham só suscita interesse na medida em que puder ser ficcionado.
Entreguemo-nos à ilusão mediática: os reality shows conseguem expor a verdade das relações humanas. Conseguirão realmente? Chegam-nos a casa fragmentos de uma convivência numa casa, num bastidor simulado de uma sala de espectáculo. A interacção diária, de que nos poderemos julgar testemunhas neutras, está irreversivelmente perturbada por um terceiro elemento arrasador: a luz da ribalta. Mas mesmo aí só interessam os factos que permitem uma ficção. Acedemos, quanto muito, a identidades desfocadas e desorganizadas, a gestos descontextualizados mas que autorizam a construção de uma história absurda sobre eles.
Os mass media, neste particular, arrogam-se de um totalitarismo arrasador. Esquecem-se que são uma representação, entre outras, do mundo: afirmam-se como possuindo a objectividade derradeira, aquela que não permite mais objecções. Já sabemos: uma imagem vale mil palavras… O problema é que essa objectividade é fragmentária: os exemplos vivos dos inquéritos de rua; a figura mediática, tudo isso não nos põe em contacto com o outro na sua diversidade e contradição.
Um dos perigos do individualismo contemporâneo centra-se, precisamente, na importância nuclear que os mass media assumem na vida urbana. É através deles que se organiza a percepção mútua dos grupos na cidade. Estranhamente, apesar da urbanidade convocar a heterogeneidade dos contactos humanos, a maioria de nós organizou o seu quotidiano citadino na homogeneidade: o mendigo tece os seus contactos no exterior dos espaços normativos; o indivíduo da classe média elege, da mesma forma, a sua monótona área de movimentação.
Stanley Cohen debruçou-se sobre o funcionamento citadino. Um dado grupo urbano tende a formar imagens redutoras e simplistas do que lhe é exterior. Falamos de estereótipos que são, rapidamente, incendiados pelos órgãos de informação. Cohen denominou esse movimento de pânico moral: de facto, há reacção de alarme perante as novas drogas, antes de serem um problema; há um súbito pico no sentimento de insegurança sem que as estatísticas sobre o crime o justifiquem.
Referimo-nos, em todos esses exemplos, a um distanciamento do outro que é simplificado e capturado numa descrição pouco fidedigna. Em todo o caso, não reagimos ao que o outro é, tão-só respondemos a uma imagem desfocada que dele invocamos em nós. Subitamente, essa imagem ganhou materialidade. Incarnou. Mais uma vez: o ecrã dificulta a denúncia da ilusão. O desconhecido é ameaçador: mesmo quando não tem direito à palavra, alguém nos assegura sobre a realidade do estereótipo.
O mais assustador de tudo isto é a conversão maciça à imagem para consumo imediato: nada de complexidades simbólicas. O filme deve entrar logo na acção sem delongas inexplicáveis. Devore-se tudo, devore-se já! A guerra é sintonizada, observada em directo. A angústia da mãe em busca da sua filha é acompanhada diariamente. Oiçamos o sofrimento: mas só o sofrimento que se possa assimilar à história infinita do espectáculo. Queremos emoções: medo, angústia, indignação. Fujamos da boca cerrada, da dor inexprimível ou da paixão inefável – tudo aquilo que não é show.
A tragédia é que, no meio desse festim omnipresente de acontecimentos, não nos apercebemos que o gesto é autofágico: destruímos a nossa disponibilidade para os outros, a nossa aceitação da incoerência e contradição inerente à existência. Oiçamos Marc Augé nos comentários que tece a propósito da emergência do ficcional nas sociedades contemporâneas. A simplificação do simbólico “cria assim as condições de solidão e a ameaça de engendrar um eu tão fictício como a imagem que ele próprio forma dos outros.”
Entretanto, fiquemo-nos por uma ideia sábia: a de um velho senhor que permanece mudo perante a inquirição infrene do microfone e das câmaras. Está muito longe, está de fora desta lógica que nos tolhe o olhar. Meditemos um pouco sobre o seu exemplo… até porque não é possível fazer zapping ao verdadeiro silêncio.
RT, Público, 12 de Agosto de 2007
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